Um dia desses, vi em algum lugar que “não é difícil explicar algo (no sentido de educar) para uma criança; difícil é explicar para um adulto que, tudo o que ele aprendeu até agora, está errado”. Eu cresci separando o “lixo” reciclável do orgânico, tendo a certeza de que aquilo era o melhor que eu podia fazer; foi só aos 28 anos que aprendi que a reciclagem é uma atividade quase inexistente e que estava longe de ser, de fato, uma solução. Pode ser desafiador desconstruir os conceitos que a gente carregou por 28 anos ou mais, mas não só é possível como também é libertador. E, neste caso em específico, entendo que seja nosso dever; já entendemos que estamos sujando e destruindo a nossa casa (o planeta Terra), então não tem sentido continuar com os “aprendizados errados”, não é?

Tive a alegria de assistir uma conversa entre a Marcella Zambardino (cofundadora da Positiv.a) e o Mundano (artivista e fundador do movimento Pimp My Carroça e do aplicativo Cataki), cujo tema foi A questão dos resíduos no Brasil: a ótica dos catadores. Nela, eles falaram sobre: reciclagem; economias linear e circular; o papel do poder público e das pequenas e grandes empresas; da ANVISA; da logística reversa; do ativismo, hábitos e poder de escolha do consumidor final; dos tipos de material que compõem os produtos e embalagens; das cooperativas de reciclagem e ferros-velhos e, claro, dos catadores e catadoras de materiais recicláveis. Com a autorização da Marcella, separei alguns trechos para vocês (dois vídeos de 15 minutos cada). Antes de mergulhar nesse bate-papo entre os dois, vamos só dar uma pequena contextualizada (sempre importante entender o recorte que é dado da informação que chega até nós):

  • Positiv.a é “uma empresa B, ecologicamente e socialmente responsável, que cria produtos e soluções para cuidar da sua casa, do seu corpo e do nosso planeta”;
  • Pimp My Carroça atua desde 2012 fazendo um upgrade nas carroças dos catadores e catadoras de materiais recicláveis, para que essas pessoas saiam da invisibilidade (literalmente, pois as carroças chamam mais atenção depois de “repaginadas”) e seus trabalhos possam ser valorizados. Mundano grafitou a primeira carroça em 2007;
Crédito: Mundano (2010). Imagem disponível no Flickr do Pimp My Carroça.
  • o aplicativo Cataki “existe para aproximar geradores e catadores de resíduos, aumentando reciclagem e renda”;
  • a conversa aconteceu dia 09/06/2020, tem 66 minutos de duração e está disponível, na íntegra, aqui.

Bora assistir os trechos selecionados especialmente para você?

“A questão dos resíduos no Brasil: a ótica dos catadores” – trechos selecionados (Parte 1)
“A questão dos resíduos no Brasil: a ótica dos catadores” – Parte 2

Reparou como, logo aos 40 segundos do primeiro vídeo, o Mundano fala a palavra “lixo” e faz um sinal de “entre aspas” com as mãos? Pois é, minha gente. A gente tem chamado de “lixo” o que é, na verdade, recurso. Sabe tudo o que “jogamos fora”? A estimativa é que:

  • 50% (ou mais) seja matéria orgânica;
  • 40% seja material reciclável;
  • 10% seja rejeito (rejeito é o que a gente rejeita, por não ter o que ser feito com ele).

Ou seja: só 10% do que a gente entende como lixo e acaba enviando para o aterro sanitário ou lixão a céu aberto é, de fato, lixo. Todo o resto, tem (ou deveria ter) potencial para voltar à cadeia produtiva, de se reinserir no mercado e de gerar renda (ou seja, de fechar o ciclo – olha a economia circular aí!).
Quando falamos a palavra “lixo”, logo pensamos em algo do qual queremos nos livrar, de algo sujo, de algo INÚTIL. O que acontece quando a gente chama de “lixo” o que é, na verdade, recurso, matéria-prima, insumo, resíduo reciclável, matéria orgânica, algo que tem, sim, utilidade? Acontece o que o Mundano fala logo no primeiro trecho: a gente enterra (“joga fora”) dinheiro – e pagamos impostos para que ele seja enterrado.
Se pensamos apenas nas embalagens, pode ficar um pouco mais difícil de visualizar o dinheiro sendo enterrado, certo? Não por isso: estamos enterrando roupas, computadores, celulares, sapatos, móveis, livros, maquiagens, louças … comida.

(Um pequeno parêntesis, porque não tem como deixar de fazer este link: nesta mesma lógica de raciocínio, consegue ver porque a incineração é questionável? Se formos queimar materiais como plástico, vidro, papel, alumínio (e outros), de onde tiraremos essas matérias-primas para produzirmos novos itens?)

Sentiu o peso que tem a gente escolher as palavras corretas para nomear as coisas? Eu sinto o tempo todo – e por isso resolvi trazer esse tema. Caminhamos pro fim dessa edição e, a tarefa prática que vou deixar para vocês é, possivelmente, a mais acessível que já pensei em 3 anos de Pratique: troque as palavras que você usa quando o assunto é lixo, ainda que seja mentalmente. Pensei em duas trocas; a primeira, por me parecer igualmente simples e eficaz; a segunda, por entender que seja urgente:

1. Substitua as palavras “jogar fora” por “descartar”. Quando a gente fala/pensa “vou jogar isso fora!”, a gente tende a se desfazer do que quer que seja com muita tranquilidade. Agora, se falamos/pensamos “vou descartar isso!”, vem um senso de responsabilidade junto. É quase como se a gente precisasse completar com “Descartar onde? Como? Para quem?”. Sem contar que, se já estamos cansados de saber que esse “fora” não existe, por que estamos insistindo em nomeá-lo e citá-lo várias vezes ao dia?
2. Quando o assunto é alimentação, a palavra “lixo” simplesmente não cabe. É necessário a gente começar a olhar para o descarte (cascas, talos, aquele restinho de feijão e arroz que fica no prato, a fruta que murchou, etc) e fazer a seguinte leitura: “isso é nutriente; isso é matéria orgânica”. Uma vez incorporada essa ideia, o incômodo de descartar (e não “jogar fora”, certo?) esses itens naquela sacola plástica do cesto da cozinha fica cada vez maior. Quando menos espera, você está interessada(o) em começar a compostar. E, uma vez que você começa, não tem mais volta.

Eu fico por aqui satisfeita e grata por ter com quem compartilhar tanto aprendizado. Vou amar saber se essa leitura te despertou alegria, incômodo, aperto ou calor no coração (ou tudo isso junto! hehe). Via comentário ou e-mail, é só entrar em contato!

Nativa Taino Villalta
Nativa Taino Villalta

Educadora em sustentabilidade para pessoas e negócios, engenheira de produção e fundadora da Pratique Consciente. Atua na criação de consciência e de práticas que fomentam e constroem um sistema produtivo regenerativo e uma economia circular.

Este texto faz parte da sustentabilidade atemporal, a newsletter da Pratique Consciente. Para mais curadoria de conteúdo, provocações e reflexões chegando direto na sua caixa de e-mail, inscreva-se aqui.

1 Response
  1. Priscilla Hidalgo

    Amei Nat!! Fazemos essa mudança no linguajar para reprogramar pacientes na medicina que estão em reabilitação de alguma condição física por exemplo: troque não consigo por consegui mais um dia. E levar isso para exemplos e educação na prática consciente contra o desperdício que fazemos no “lixo” achei sensacional! Vlw ???