COMO QUEM VENDE ESTÁ COMUNICANDO A SUSTENTABILIDADE A QUEM COMPRA?

Defendo que quando somos legítimos e coerentes conosco, estamos sendo também com o mundo. Isso não significa que ser assim seja sempre acessível ou que isso signifique viver a vida em plenitude (não romantizemos). Também defendo que as palavras tem poder (vide a newsletter #002) e exercem um papel na construção da nossa realidade. Por último, sou uma pessoa observadora. Agora junte tudo isso ao fato de eu, como outros seres humanos, assumir também o papel de consumidora final. A análise que você vai ler vem desse conjunto de características. Não sou profissional de comunicação & marketing e minha intenção é – como sempre – despertar nossos olhares pra esse mundo “novo” da sustentabilidade.

Trago aqui passagens de 5 negócios fazendo suas devidas comunicações com o público. Já adianto que veremos de tudo, tá? E, lembre-se: tudo o que está aqui é um recorte. Questione o que você lê e se aprofunde na investigação.

1. Caixa de Bombons Especialidades NESTLÉ

No segundo semestre de 2020, a Nestlé anunciou: “retiramos o plástico em volta das nossas caixas de bombons”. Separei 3 prints do vídeo do anúncio mas, antes de vê-los, pare e pense: quantas toneladas (eu disse toneladas) de plástico você acha que isso significa por ano?

Pois é. 450 toneladas de plástico, por ano, apenas para esse produto. Fui pesquisar quando a caixa foi lançada, para fazer uma estimativa de quanto plástico sua comercialização já “colocou no mundo”, e foi aí que a história se aprofundou um pouco mais. Veja o que mostra a linha do tempo da marca:

Imagem: Reprodução/Site Oficial Nestlé.

Esse vídeo (imagem à direta e disponível na íntegra aqui) é a propaganda do produto na época (1988) e ele mostra como esse plástico, a princípio, não existia (dependendo da sua idade, talvez você consiga fazer esse resgate na sua memória). E aí a gente precisa se perguntar: algum dia esse plástico foi necessário? Se sim, quando e por quê? Se sim, “quem disse” que ele era necessário (e faturou com isso)? Se não, a marca está celebrando o fato de retirar algo que, na verdade, nunca precisou fazer parte da composição do item – e essa celebração apresenta como justificativa “pensando no meio ambiente”, vem toda decorada de verde e marrom kraft (sugestivo, não?) e acompanhada de palavras como “repensar”, “reduzir” e “recriar”. Além disso, a frase de abertura da propaganda é “Vamos repensar as embalagens?” – todos os 14 bombons que vem na caixa são individualmente embalados em material dito reciclável, mas que não é reciclado – em outras palavras, estão aí se acumulando em algum lugar do globo terrestre (no mar, nos lixões a céu aberto e enterrados nos aterros sanitários). Então, Nestlé, vamos sim, de fato, repensar as embalagens.

2. Renault Brasil | ZOE (carro elétrico)     

    Recebi três e-mails com propagandas:

Imagem: Arquivo pessoal.

Já fico ressabiada quando leio, logo no título do segundo e-mail, “Nativa, você conhece um carro que não polui?”; vou focar a discussão no que foi comunicado neste e-mail em específico, ainda que os outros dois tenham tanto material quanto para ser explorado neste contexto. Seguem os trechos:

Surpresa! O carro que “não polui” está rodando em … Fernando de Noronha! Terminei de ler a propaganda com aquele sentimento de que para ser sustentável e ajudar a preservação não só da ilha, mas do planeta Terra, eu preciso adquirir este carro. Ou será que “Renault ZOE: o seu caminho para preservar o meio ambiente” e “Viva a sustentabilidade com o Renault ZOE” quiseram dizer outra coisa?

O “Z.E.” de “Noronhe-Z.E.” vem de “Zero Emission” (em português, “zero emissões”); “zero emissão de poluentes” é diferente de dizer “zero emissão de gás carbônico” que é diferente de dizer “um carro que não polui”. A qual destes a marca, efetivamente, se refere? Como é feita a produção de cada componente do veículo? Quais materiais são usados? De onde esses materiais são extraídos? No final do ciclo dele (quando chega a hora do carro ser “jogado fora”/descartado), para onde vão todas as partes que o compõem? É preciso ser cauteloso quando se usa o “zero” na comunicação.

E sabe qual é o único carro que não polui? O que está no nosso imaginário, no plano dos sonhos; a partir do momento em que ele se concretiza no plano terrestre, ele polui de alguma forma.

3. Whisky Johnnie Walker (Diageo)

Não encontrei informações no site da marca, então utilizarei a comunicação feita via a revista GQ, no caderno “Sustentabilidade”:

A garrafa de vidro, utilizada pela marca por 200 anos, também é livre de plástico.

A garrafa de vidro, utilizada pela marca por 200 anos, também pode ser totalmente reciclada. Pode, inclusive, ser reutilizada.

Um “grande marco” para quem? Em qual campo?

Antes: garrafa de vidro (com potencial de ser retornável e 100% reciclável);
Depois: garrafa de papel (100% reciclável).
ONDE ESTÁ A INOVAÇÃO?

Para uma análise completa desta comunicação, recomendo este vídeo da Karin Rodrigues, do Por Favor Menos Lixo.

Pra mim, este é um exemplo clássico da “sustentabilidade a qualquer custo”, aquela sem planejamento, sem pensamento à longo prazo, sem medidas eficazes, mas que tem que ser “pioneira” na “embalagem 100% livre de plástico”, argumento esse que poderia ter sido usado desde sempre e sem precisar investir em “inovação” (porque a garrafa de vidro, de novo, também é 100% livre de plástico). E tudo isso acontece pra justificar uma “produção a qualquer custo”, aquela que também acontece sem pensamento sistêmico. E não foi justamente a falta de pensar no todo e a longo prazo que (também) nos trouxe para onde estamos agora, rodeados de “lixo”, contaminação e destruição dos recursos naturais? Pois é.

4. Ovos de Páscoa Casa Origem (Florianópolis/SC)

Enquanto uns investem no discurso, outros investem na prática. Numa definição mais objetiva, a Casa ORIGEM é um restaurante que trabalha atento a todo o ciclo do alimento (desde sua produção até o seu “descarte” – neste caso, a compostagem) e está em constante revisão dos seus processos, sempre com a intenção de gerar a menor quantidade de “lixo” possível (eles sempre compartilham os recuos e avanços dessa caminhada no perfil do Instagram). Além da preocupação com a origem e qualidade do produto oferecido, há a preocupação com a embalagem também. Veja como já foi vendido o ovo de Páscoa produzido lá:

UM ADENDO

Nos últimos anos, no mundo dos ditos “novos negócios”, fala-se muito em “sair da zona de conforto”, “ser disruptivo” (romper com os padrões atuais de lógica e funcionamento) e a criatividade foi elevada à “habilidade indispensável” para o sucesso do empreendimento. É claro: as grandes corporações também vem incorporando este discurso. Quais negócios você conhece que tiram você da sua zona de conforto, rompem com os padrões atuais de funcionamento da sua vida e te apresentam formas criativas de existir quando o tema é sustentabilidade? (Se vier algum em mente, por favor, divida comigo!)

5. Serviço de coleta de resíduos orgânicos e compostagem do Ciclo Orgânico (Rio de Janeiro/RJ)

É isso mesmo que você leu: desde 2015, o Ciclo Orgânico, pioneiro no que faz, transforma o “lixo” de residências da cidade do Rio de Janeiro em adubo. Assino a newsletter deles e abaixo está um trecho do e-mail “Retrospectiva 2020”:

Imagem: Trecho da newsletter do Ciclo Orgânico. Arquivo pessoal.

Quando a sustentabilidade está no cerne do negócio, não se faz necessário um storytelling, um cenário romantizado para criar desejo no consumidor ou frases feitas para te convencer de que o produto/serviço é sustentável. Repare que a empresa está comunicando os resultados dos trabalhos de 2020 e, ao mesmo tempo, o que lemos, é a sustentabilidade aplicada, prática, real; aquela que, de fato, está trazendo resultados para mim, para você e para todas as outras espécies que aqui habitam. Geração de emprego, queda no tamanho dos aterros sanitários e fertilidade do solo (sem tóxicos!): ganha-ganha-ganha.


Quando decidi escrever sobre este tema (há alguns meses), o título deste texto era “marketing pra que te quero”. Até aquele momento, os exemplos que eu estava considerando trazer eram todos de uma abordagem incompleta (pra não dizer distorcida) do que entendo como sustentabilidade – e o que não me faltam são situações como as descritas nos itens 1, 2 e 3 arquivadas aqui comigo. Foram três os motivos do título ter sido alterado para “a comunicação”:

  1. Como boa taurina, gosto de digerir o que sinto e aprendo antes de passar pra frente qualquer tipo de conteúdo (não só na newsletters, mas em todos os serviços que presto na Pratique). Reconheci que eu estava com muita raiva de ver esse tipo de comunicação e não comecei a escrever o texto até que eu me sentisse mais tranquila (mesmo porque, a última coisa que precisamos é de mais informação sendo veiculada a partir do ódio, né?);
  2. Estando mais calma, tive a ideia de trazer exemplos de quem está fazendo uma comunicação justa e transparente (exemplos 4 e 5). A partir daí, já caiu por terra o título antigo. Repare que, com ele, eu estava colocando o marketing como o vilão da história;
  3. marketing não é o vilão da história. Fiquei muito feliz em ter respeitado meu tempo para escrever este texto, porque foi processando as informações que me lembrei deste detalhe. Até meus 28 anos de vida eu não fazia o link entre extração-produção-consumo-descarte – e eu estudei engenharia de … produção!

O “lixo” que vemos hoje é um problema estrutural. É injusto (e pouco inteligente) responsabilizar apenas um tipo de profissional/área de atuação pela situação atual de consumo e descarte desenfreados e inconscientes. Enquanto pessoas, “só” estamos reproduzindo o que nos foi e é ensinado desde o primeiro dia de vida – e, consequentemente, reproduzimos esses padrões e lógicas onde quer que atuemos: em casa, na relação com as pessoas, nos espaços públicos, na nossa profissão. A comunicação de um negócio tende a refletir o que ele é em sua origem e seus princípios, assim como as outras áreas que o compõem. Para comunicar sustentabilidade, é necessário praticar sustentabilidade.

“Ok, Nativa! Vamos terminar logo este texto que já está bem longa a leitura, né? Só queria fazer uma pergunta final: você acha sensato trazer (e comparar) no mesmo texto uma multinacional que está completando 100 anos no Brasil e uma empresa fundada em 2015 que atua apenas em uma cidade brasileira?” Ops! Eu me empolgo quando sento pra escrever! Hehe! Respondendo sua pergunta: não sei se sensato, mas com certeza necessário. Afinal de contas, todos os negócios citados aqui são reais e coexistem, ou seja, todos eles geram impactos positivos ou negativos, movimentam a economia, são parte do problema ou da solução quando o assunto é “lixo”. E todos estão interagindo com a população, certo? Então, estamos sofrendo suas influências. E ai, te pergunto: com qual deles você quer se comunicar?

Referências:

Nativa Taino Villalta
Nativa Taino Villalta

Engenheira de produção, educadora em sustentabilidade para pessoas e negócios e fundadora da Pratique Consciente. Atua na criação de consciência e de práticas que fomentam e constroem um sistema produtivo regenerativo e uma economia circular.

Este texto faz parte da sustentabilidade atemporal, a newsletter da Pratique Consciente. Para mais curadoria de conteúdo, provocações e reflexões chegando direto na sua caixa de e-mail, inscreva-se aqui.